O Sonho Americano fede: quando John Waters fez um filme com cheiro

Barbara Albertoni
7 min readJun 2, 2023

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Um filme é pensado para estimular diferentes sensorialidades, como visão e audição, mas e se algum cineasta tivesse interesse em estimular também o sentido do olfato, tanto para a diegese quanto para a experiência cinematográfica do público? Seria possível sentir o cheiro de um filme, como Aldous Huxley já havia imaginado e escrito em seu romance Admirável Mundo Novo?

Polyester (1981), filme dirigido por John Waters

Adicionando cheiro ao cinema

Em 1932, o escritor Aldous Huxley pensou em uma convergência entre olfato e audição para a experiência sensorial do cinema presente na sociedade apresentada em seu livro Admirável Mundo Novo. Estar em uma sala escura de cinema é sempre uma experiência de imersão sensorial do público naquele mundo ficcional que está sendo exibido na tela. A linguagem cinematográfica possui um conjunto imenso de técnicas que permitem inúmeras possibilidades de se contar uma história e nunca faltou criatividade aos cineastas para combinar variadas técnicas que melhor transmitissem a narrativa desejada. No entanto, ao longo da história do cinema, sempre foram pensadas maneiras de expandir as experiências cinematográficas para além da tela e aumentar o contato do público com o mundo ficcional.

Em 1959, surgiram duas técnicas sensoriais chamadas AromaRama, utilizada no filme Behind The Great Wall (Carlo Lizzani, 1958), e Smell-O-Vision, utilizada no filme Scent of Mystery (Jack Cardiff, 1960), ambas as tecnologias tinham o objetivo de inserir odores nas salas de cinema conforme o narrativa do filme. O truque do AromaRama utilizava o sistema de ar-condicionado das salas para liberar os odores. Semanas depois, surgiu o Smell-O-Vision, que consistia em bombas de odores colocadas em cada assento. Os truques não conquistaram o público, pois os odores eram muito fortes e irritavam o nariz das pessoas, e logo foram deixados de usar.

Em 1981, inspirado pelos truques de marketing do cineasta William Castle, pelo AromaRama e pelo Smell-O-Vision, o cineasta trash John Waters resolveu resgatar os truques sensoriais e criar sua própria tecnologia para inserir odores no filme Polyester, seu primeiro filme de estúdio (New Line Cinema) e que satiriza a falsa virtuosidade típica do conservadorismo dos subúrbios de classe média estadunidenses. A comédia acompanha a turbulenta vida de Francine Fishpaw, uma dona de casa boa e cristã que se torna alcoólatra após enfrentar problemas com o marido pornógrafo, os filhos adolescentes delinquentes e a mãe parasita.

Francine tem um olfato muito apurado que a ajuda a descobrir as coisas erradas que acontecem dentro de sua casa, então os odores fazem parte da própria narrativa do filme. O Odorama permitiu que o público do filme pudesse compartilhar a mesma experiência olfativa de Francine Fishpaw, usando o próprio olfato para descobrir as coisas antes que os olhos pudessem vê-las nas cenas e estimulando uma maior identificação entre a personagem e o público, bem como uma continuidade do espaço fílmico para o espaço físico do nosso mundo.

“Não raspe até você receber instruções do filme.”

Antes de iniciar o filme nos cinemas, era apresentado um vídeo com as instruções e informações sobre o funcionamento do Odorama: uma cartela contendo dez números era entregue ao público e cada número deveria ser raspado e cheirado conforme a indicação numérica que apareceria piscando no canto da tela durante cenas chaves do filme. Ao raspar os números, o público era convidado a experenciar diversos odores, desde chulé até gambá — mas também havia odores agradáveis, como pizza. Com uma filmografia subversiva, depravada e repulsiva, que inclui até uma cena na qual personagens comem cocô de cachorro (Pink Flamingos, 1972), o objetivo com Polyester, segundo o próprio Waters, seria “fazer um filme que realmente fede”.

O Sonho Americano fede

Ao fazer um filme que realmente fede se utilizando de uma paródia dos melodramas do cineasta alemão Douglas Sirk, populares na década de 50 por tratarem da vida suburbana e considerados de maneira pejorativa como “filmes de mulheres”, John Waters busca desmascarar as promessas de uma vida perfeita feitas pelo ideal do Sonho Americano, além de mostrar a artificialidade das relações familiares e dos papéis de gêneros — especialmente por colocar a famosa drag queen Divine interpretando uma tradicional esposa e dona de casa de um subúrbio estadunidense, rompendo, deste modo, com o binarismo entre masculinidade x feminilidade imposto pelos valores dominantes e conservadores. O material que dá nome ao filme é barato, popular e sintético, considerado um símbolo da artificialidade, assim como o estilo de vida massificado promovido pelas propagandas capitalistas a partir da década de 50.

Quando a personagem Francine Fishpaw é apresentada ao público no início do filme, ela está fazendo o seu ritual de beleza matinal — passando maquiagem e perfume, colocando calcinha elástica, depilando o nariz e as axilas e passando desodorante nos pés. A cena é acompanhada de uma música que intitula Francine como “rainha do poliéster”. Quem canta a música é Tab Hunter, ídolo teen e sex symbol da década de 50 e que compõe o elenco do filme. A vida de Francine é artificial como o poliéster: ela esconde todos os aspectos naturais de seu corpo, incluindo os odores, criando um corpo que seja visto pela sociedade como mais feminino, delicado e admirável e que esteja de acordo com o ideal de beleza feminina; ela também faz de tudo para manter a aparência perfeita de sua família conforme os valores da família tradicional.

Divine como a dona de casa Francine Fishpaw

A escolha de Divine para o papel de Francine reforça o argumento do cineasta de que a feminilidade é um processo artificial, podendo ser realizado até em corpos considerados masculinos, desconstruindo a ideia de que a feminilidade seja natural, e portanto indispensável, aos corpos considerados femininos. Divine esteve em vários trabalhos de Waters interpretando ela mesma como uma mulher poderosa, extravagante, criminosa, repulsiva e que desejava ser “a pessoa mais imunda viva” (Pink Flamingos, 1972). Em Polyester, a imagem e o comportamento de Divine são limpos e domesticados, adicionando mais uma camada à crítica sobre a teatralidade da vida da família tradicional. A presença de Divine desequilibra as definições de natural e artificial, feminino e masculino, ou seja, desequilibra a estrutura em que os discursos de gênero são alicerçados.

Desde o nascimento, corpos considerados femininos sofrem com a imposição de um conjunto de normas sociais, entre elas está o trabalho não remunerado da reprodução social, ou seja, a responsabilidade de cuidarem da casa, educarem os filhos e manterem a ordem dentro da família. Francine vive para cumprir perfeitamente os seus papéis de mãe e de esposa e ver sua família feliz e em harmonia como uma tradicional família suburbana de classe média, mas ela acaba perdendo o controle de tudo ao seu redor quando seu marido e seus filhos, que a desprezam, decidem seguir seus desejos individuais de maneira irrestrita passando por cima da unidade familiar que Francine tanto aprecia e almeja. Assim, a família tradicional se torna o próprio lugar de perversidade. Bem como a feminilidade é artificial e precisa ser construída a partir de uma domesticação ideológica, o lugar de mulheres como donas de casa faz parte dessa construção que se mostra cruel em muitos momentos.

“Eu sou uma boa mulher cristã!”

Francine se define como uma “boa mulher cristã”, embora o sustento de sua família venha do cinema pornô que seu marido é dono. Ela busca desesperadamente a aceitação de seus vizinhos conservadores do subúrbio, que se colocam moralmente superiores protestando contra o trabalho do marido de Francine, além de a humilharem constantemente por ela não conseguir desempenhar o seu dever como dona de casa e manter a unidade familiar. A ideologia conservadora se alimenta da hipocrisia das aparências sintéticas, construídas milimetricamente para parecerem perfeitas, desde a feminilidade até as relações familiares. No entanto, nem todo o poliéster do mundo e nem os móveis populares produzidos em massa podem disfarçar a podridão que está escondida pelos cantos das casas e que assombram as famílias.

No fundo do poço após ver sua vida desmoronar, a “rainha do poliéster” se apaixona pelo belo e sedutor Todd Tomorrow em um encontro um tanto improvável. Os dois começam a viver um romance digno de propaganda de margarina, porém como as propagandas capitalistas e patriarcais, o romance perfeito se mostra apenas uma fachada para um golpe arquitetado por Todd e a própria mãe de Francine, que julga e maltrata a filha a todo momento.

John Waters se recusa a eliminar as partes desagradáveis da vida e utiliza o Odorama para além de um simples truque: a experiência olfativa não é simplesmente algo externo para ser adicionado ao filme, ela é pensada dentro da própria linguagem cinematográfica para inserir o público no universo diegético malcheiroso vivido por Francine Fishpaw, ou seja, os odores fazem parte do próprio contexto das ações presentes no filme. Na construção dos aspectos ilusórios de sua vida, a “rainha do poliéster” até tenta deixar sua vida mais cheirosa borrifando uma lata de Glade com o objetivo de restaurar a atmosfera de felicidade e paz, mas é difícil disfarçar o fedor do Sonho Americano.

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Barbara Albertoni

Cientista social e especialista em Cinema e Produção Audiovisual. Realizadora audiovisual, fotógrafa, crítica de cinema e criadora do projeto MALDITA.