O corpo humano na pós-modernidade de Cronenberg

Barbara Albertoni
12 min readAug 20, 2022

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Entre os mantras “long live the new flesh” e “body is reality”, David Cronenberg, o cineasta da carne, coloca o público na posição de voyeur da fragilidade do corpo humano frente a um mundo altamente tecnológico.

Crimes of the Future (2022)

O corpo em transformação

O body horror é um subgênero do horror presente em diferentes formatos narrativos que utiliza o próprio corpo humano como a fonte do grotesco. As relações estabelecidas entre os corpos e a sociedade sempre foi objeto para a arte e para os estudos acadêmicos, já que é através do corpo que assimilamos, sentimos e manifestamos o mundo. O corpo é o nosso contato imediato com o mundo e o modo como ocupamos o espaço.

Na literatura, por exemplo, Franz Kafka utilizou a transformação de Gregor Samsa em um inseto para representar a relação do personagem com o modo de vida capitalista. No livro A Metamorfose, Gregor acorda após uma noite de sonhos intranquilos e vê-se transformado em um inseto gigante, impossibilitado de trabalhar e de se comunicar com a família, perdendo, assim, a sua utilidade. Gregor passa a aceitar com alegria sua nova situação pois, não sendo mais humano, estaria livre das condições impostas pelo capitalismo.

Antes disso, Mary Shelley já mostrava o seu interesse nos aspectos científicos do corpo humano. Em Frankenstein, ou O Prometeu Moderno, o cientista Victor Frankenstein dá vida a um corpo humano novo montado a partir de partes mortas. Shelley, inspirada por descobertas e experimentos científicos da época, como a corrente elétrica (Benjamin Franklin) e a animação de matérias mortas (Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin), aproveitou-se do mito de Prometeu para refletir sobre os riscos do conhecimento científico ilimitado que desafia a natureza.

Com o cinema moderno, o body horror encontrou no olhar sádico da câmera, no gore e na violência explícita um terreno fértil para explorar as fragilidades do corpo humano e consolidou-se como um subgênero, tal como o conhecemos hoje. Embora o cinema sempre tenha usado corpos não normativos como um lugar de medo, ansiedade e abjeção, especialmente com monstros, demônios e zumbis, o diretor canadense David Cronenberg é um dos grandes precursores na consolidação do body horror na década de 80, ao lado de outros nomes importantes como John Carpenter, Sam Raimi e Clive Barker.

O mundo tecnológico de Cronenberg

As transformações e mutações do corpo humano que o cineasta David Cronenberg expõe em suas obras partem de compreensões filosóficas acerca dos desdobramentos tecnológicos e produtivos do mundo capitalista. O cineasta conduz ao extremo a influência da tecnologia no corpo humano para observar como a tecnologia pode afetar a percepção humana do corpo e da realidade. Tal compreensão filosófica de Cronenberg é construída dentro de uma narrativa pós-modernista* que começou a se manifestar no cinema a partir da década de 80. Esse cinema pós-moderno, expressão da pós-modernidade, busca um distanciamento dos recursos clássicos e, segundo o crítico literário e teórico marxista Fredric Jameson, é marcado pela tentativa de romper com o presente através de um deslocamento narrativo e formal. O conceito de pós-modernidade**, estabelecido por intelectuais principalmente a partir da década de 60, pressupõe uma ruptura radical com o projeto iluminista, com a racionalidade moderna e com a produção industrial, partindo do surgimento de novas tecnologias e de uma série de transformações culturais.

Videodrome (1983)

No filme Videodrome (1983), Cronenberg imagina uma relação dos efeitos da tecnologia na perda do controle humano sobre o próprio corpo. A partir dos anos 70, as fitas cassetes ganharam popularidade e facilitaram o acesso das pessoas aos mais diversos conteúdos, incluindo sexo e violência, por esse motivo a atenção de Cronenberg nesse filme é voltada especialmente para a televisão e as fitas cassetes. Como o Professor O’Blivion, personagem do filme, afirma: “a televisão é a realidade e a realidade é menos do que a televisão”. É interessante observar como a reflexão de Cronenberg sobre imagens com conteúdos extremos na televisão atinge o próprio trabalho do cineasta, que já havia produzido filmes que ficaram conhecidos pela violência gráfica. Videodrome é um filme que pode ser visto como um paradigma no trabalho de Cronenberg, pois apresenta temáticas de obras anteriores e posteriores.

A trama nos apresenta Max Renn, o proprietário de um pequeno canal de TV que transmite apenas conteúdos violentos e com pornografia leve e que está procurando conteúdos novos e mais brutais para aumentar a audiência do canal, já que, segundo ele, é o que o público deseja assistir. Chega ao conhecimento de Max a existência de um sinal de satélite misterioso que transmite o programa Videodrome, com conteúdos explícitos de tortura, violência e assassinato, remetendo aos chamados snuff films. No Videodrome, pessoas não identificadas aparecem em sessões mortais de tortura.

Videodrome (1983)

Max e sua namorada Nicki ficam obcecados pelo conteúdo do Videodrome sem saberem que aquelas imagens são reais. Nicki, que possui desejos sadomasoquistas, sente-se estimulada a participar do programa, abandonando tudo para seguir suas vontades sexuais. Max começa a sofrer alucinações e seu corpo inicia um processo de transformações. Primeiramente, uma abertura em formato de vulva surge em seu abdômen, onde fitas cassetes para o seu controle mental são inseridas, como se o corpo de Max fosse agora uma extensão da televisão e pudesse ser programado.

As alucinações de Max são causadas por um tumor que se desenvolveu em seu cérebro por causa da exposição aos sinais ocultos emitidos pelo programa. O Professor O’Blivion, a primeira vítima do Videodrome, explica que os sinais presentes no canal desenvolvem novas estruturas no cérebro para que sejam produzidas alucinações a ponto de serem realizadas mudanças na percepção humana da realidade, “afinal, não há nada real, além de nossa percepção da realidade” [Professor O’Blivion]. O Videodrome pode ser identificado como uma ferramenta política dentro de um contexto reacionário que visa combater a transgressão de valores morais: qualquer pessoa com um comportamento sexual desviante o suficiente para se interessar pelo programa acaba se tornando alvo dos sinais ocultos.

Videodrome (1983)

A nova percepção de realidade distorcida conduzida pelo Videodrome faz parte de um projeto conspiratório que pretende ser hegemônico e que encontrou na busca constante dos sujeitos por diferentes prazeres a maneira ideal para se difundir. É através do domínio da tecnologia que os corpos iniciam um processo de metamorfose monstruosa para acessar outra realidade e alcançar o objetivo: a nova carne. A nova carne tem o objetivo de superar o corpo humano, então é necessário deixar o corpo físico morrer para que o corpo biotecnológico surja. O personagem do Professor O’Blivion é um exemplo de uma existência somente virtual: ele aparece e se comunica através de fitas cassetes porque seu corpo físico deixou de existir na realidade comum.

Os horrores inscritos na nova carne representam um corpo dominado e colonizado pela tecnologia, que pode ser programado e empregado como meio e fim para o controle social. A tecnologia, assim como a ciência, está inserida na lógica capitalista, portanto sua utilização não é isenta de ideologia. Não é a presença da tecnologia em si na sociedade que deve ser tratada com olhar crítico, mas a forma como é utilizada, as suas intenções e a classe social que a controla. Para o filósofo Herbert Marcuse, crítico de uma suposta neutralidade presente na tecnologia e na ciência, a tecnologia é “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e de dominação”. Embora, ao longo do filme, não tenhamos conhecimento de quem (ou o quê) esteja por trás do Videodrome, o seu caráter de controle e dominação é evidente. Cronenberg faz uso do body horror para colocar o corpo humano em um lugar de angústia e aflição pela impotência diante de um mundo tecnológico que possui implicações desconhecidas.

A narrativa pós-modernista de Cronenberg deixa interrogações durante todo o filme: o que estamos vendo dentro daquele universo em que Max está inserido é real ou é alucinação? O Videodrome existe ou as alucinações de Max têm origem patológica? A perspectiva limitada de Max sobre o que está acontecendo é a mesma do público, restando apenas suposições. Construir um roteiro que não se encerra em si mesmo e permite diversas interpretações e especulações é mais uma técnica pós-modernista aplicada por Cronenberg. O filme termina com Max apontando para sua cabeça sua mão transformada em arma e proferindo a palavra de ordem: “vida longa à nova carne” seguido por um corte na imagem.

Cirurgia é o novo sexo

Com um roteiro escrito pela primeira vez ainda na década de 90, a proximidade temática do novo filme de Cronenberg com suas obras passadas, como Videodrome (1983), Dead Ringers (1988), Crash (1996) e eXistenZ (1999), é indiscutível. No filme Crimes of the Future (2022), o cineasta permanece com seu fascínio filosófico em explorar as relações entre a matéria orgânica e a matéria sintética. Dentro de uma narrativa pós-modernista que vai desmoronando ao longo do filme, o filme foi rodado nas ruas em ruínas de Atenas, que sempre representou o berço e o projeto de uma civilização ocidental. As angústias e preocupações, tanto artísticas, quanto sociais, de Cronenberg se encaixam mais uma vez nesse formato de cinema pós-moderno porque refletem a crise enfrentada pelo cinema linear clássico desde o fim da Segunda Guerra.

No futuro não identificado de Crimes of the Future (2022), o corpo humano está sofrendo um processo de evolução para se adaptar e sobreviver ao mundo sintético produzido pelo avanço do capitalismo. Essa evolução atingiu a capacidade do corpo de sentir dor, levando a busca por prazer para um nível mais intenso, onde cirurgias e modificações corporais se tornaram manifestações artísticas e alvos de fetiches e desejos sexuais. Historicamente, a sexualidade é um fenômeno fluido, cujo comportamento depende de como a sociedade está organizada em sua produção, já que essa organização se estende para todas as esferas da vida social, agindo, inclusive, na formação da subjetividade. Se a cirurgia é o novo sexo, a subjetividade já incorporou em seus desejos sexuais a inevitável presença de novas formas de tecnologia. O corte do bisturi é um modo de sentir alguma coisa diferente em um mundo deprimido de paredes beges e construções deterioradas.

Crimes of the Future (2022)

O principal corpo discutido ao longo do filme é o de Saul Tenser, um artista performático que sofre de um distúrbio chamado Síndrome da Evolução Acelerada, o qual faz com que seu corpo desenvolva novos órgãos de maneira rápida e desordenada. Saul transforma essa revolta de seu corpo em uma performance artística de vanguarda para denunciar as consequências da evolução humana e, com a ajuda de sua parceira Caprice, remove os novos órgãos sem funções conhecidas em exibições públicas. O corpo de Saul se tornou um lugar de horror e abjeção, reflexo das mudanças produtivas da sociedade, e sua mente é consciente desse lugar que o corpo ocupa, por isso a mutilação do corpo é transformada em arte: “o que estou dizendo com essa coisa de arte corporal é que não gosto do que está acontecendo com o corpo. Em particular, o que está acontecendo com meu corpo. E é por isso que continuo cortando-o” [Saul Tenser].

A recusa de Saul em deixar que seu corpo siga a evolução humana é uma maneira de manter o controle sobre o que acontece dentro e fora de seu corpo. O artista colabora com o Registro Nacional de Órgãos, um departamento do governo que procura mapear novos órgãos e controlar a evolução humana por considerá-la um crime contra a própria natureza humana, revelando um equívoco que atravessa a história da humanidade: controlar a nova carne utilizando antigos princípios. Essa contradição está contida no corpo de Saul, que representa o reacionário e o progressista.

Crimes of the Future (2022)

No body horror, a nova versão do corpo humano é sempre marcada pela abjeção e pela rejeição, seja do Eu ou do Outro. A natureza imediata do choque no trabalho de Cronenberg serve para nos colocar em contato com a nossa realidade corporal. A abertura de um corpo em frente à câmera em um plano fechado é ultrapassar os limites das normas sociais; tatuar um órgão e retirá-lo é a rejeição do controle e dos valores ideológicos atribuídos ao corpo e ao comportamento humanos.

O corpo representado por Cronenberg não é somente uma máquina, uma matéria não pensante, como propôs o dualismo cartesiano, onde a racionalidade da mente domina o corpo (embora o cineasta se defina como um cartesiano em sua preocupação com corpo e mente); o corpo cronenbergniano possui desejos próprios e tensiona contra a própria mente. A partir do discurso pós-moderno, o corpo se tornou um lugar central de intervenção e invasão ideológica: o mundo atravessa e se inscreve no corpo humano. Dentro da valorização do corpo promovida por teorias pós-modernas, há um movimento de entender as limitações da materialidade corporal diante das tecnologias da informação, como questionou o filósofo Jean Baudrillard: “o que se torna o corpo quando eles foram substituídos pela sua fórmula operacional? O que se torna o sexo, o trabalho, o tempo e todas as outras figuras da alteridade, quando elas caem sob o golpe da síntese tecnológica?”. E essa questão pode servir de guia para a compreensão das obras de Cronenberg: o que sobra de humanidade após a mutação para um corpo híbrido e repulsivo, formado por carne e tecnologia? Nem Videodrome, nem Crimes of the Future oferecem uma resposta objetiva, e nem possuem tal pretensão, ambos os filmes terminam com seus personagens principais atravessando o horizonte definido pela humanidade e o que acontece a eles só pode ser suposto.

Crimes of the Future (2022)

A mente de Saul precisa enfrentar a rebelião de seu corpo contra si, que não aceita mais ser alimentado com uma comida comum. Saul decide encerrar essa batalha e satisfazer os desejos de seu corpo, entregando-o a um destino desconhecido ao se alimentar de uma barra feita de plástico, considerada por um grupo de pessoas como a solução para o corpo humano se adaptar ao ambiente sintético. Como artista e como sujeito, a trajetória de Saul está tomada por incertezas acerca dos próximos passos, bem como a incerteza narrativa de Cronenberg, onde cada cena deixa diversas possibilidades de como se encaminhar para a próxima. O caminho percorrido pelas especulações e suposições são ricos e fazem parte de uma ampla construção, mesmo sem chegar a um resultado final.

Crimes of the Future traz uma narrativa introspectiva e muito pessoal que dialoga diretamente com obras anteriores de Cronenberg e discute o próprio trabalho do cineasta, que precisa acompanhar a velocidade das mudanças tecnológicas e, consequentemente, da sociedade capitalista e das novas manifestações artísticas. Em uma cena do filme, Caprice pergunta a Saul: “estamos ficando obsoletos?”. Mesmo em um mundo quase inabitável, a arte de vanguarda continua buscando novas estéticas e estruturas e levantando questões e reflexões sobre o seu papel, mas essas questões demandam uma investigação ontológica da arte em si para pensar tais formas artísticas que são desenvolvidas a partir das novas condições materiais e psicológicas do mundo. O que faz a autópsia de um menino de 8 anos ser considerada arte? Qual o valor artístico de um corpo que performa exibindo suas múltiplas orelhas (que nem são funcionais)? Qual o limite da arte quando o próprio corpo se torna o material artístico? Questões mais viscerais que a arte de um futuro quase inóspito precisa enfrentar — mas que possuem seus embriões em desenvolvimento ainda em 2022.

Para a sobrevivência em um futuro de capitalismo tecnológico agressivo, a solução em Videodrome vem de fora e impõe aos corpos de maneira inconsciente uma fusão entre tecnologia e mente/vídeo e corpo para que os humanos consigam assimilar toda a tecnologia a qual estão expostos. Em Crimes of the Future, o corpo já absorveu o ambiente hostil em sua evolução humana, então para sobreviver é preciso aceitar e entender para onde esse corpo biotecnológico quer ser levado porque a resposta está contida nele mesmo, “o corpo é a realidade”. Quando o corpo humano perdeu a capacidade de sentir dor, ele perdeu o detector que informa sobre seus limites, adentrando uma nova área extremamente perigosa, onde as modificações vêm de dentro.

Crimes of the Future é um trabalho de aceitação de Cronenberg que, assim como o personagem principal, está em uma busca contínua por criatividade para acolher o seu corpo envelhecido e o medo de perdê-lo.

Referências bibliográficas

Aldana Reyes, X. (2020). Abjection and Body Horror. In: Bloom, C. (eds) The Palgrave Handbook of Contemporary Gothic. Palgrave Macmillan, Cham.

* Fredric Jameson pontua a diferença entre pós-modernismo e pós-modernidade: o primeiro, referindo-se à estética e ao campo cultural, sendo uma expressão cultural das mudanças econômicas dentro do capitalismo; o segundo, referindo-se a uma estrutura que estabelece um período histórico.

** Segundo a historiadora marxista Ellen Meiksins Wood, o diagnóstico da pós-modernidade ignora as particularidades dos processos de modernização em diferentes lugares do mundo e a forma desigual como o capitalismo atua em cada um desses lugares, criando uma noção de superação universal da racionalidade e da modernidade.

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Barbara Albertoni

Cientista social e especialista em Cinema e Produção Audiovisual. Realizadora audiovisual, fotógrafa, crítica de cinema e criadora do projeto MALDITA.