O simbolismo da carne

Barbara Albertoni
6 min readAug 23, 2021

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O filme Psicopata Americano, da diretora Mary Harron, começa com um sangue desconhecido pingando na tela e logo é revelada a sua origem: é sangue animal. Em seguida, começa uma sequência de imagens com diversos pratos sofisticados em um restaurante. Enquanto elemento de uma simbologia, a carne em cena é capaz de profetizar algo e pode estar associada à violência, desejo e relações de poder, despertando sentimentos de repulsa, aflição, medo e atração.

Psicopata Americano (2000), dirigido por Mary Harron

No clássico O Encouraçado Potemkin, do diretor soviético Serguei Eisenstein, marinheiros são obrigados a comerem carne podre, uma representação da decadência e putrefação do regime czarista que antecede a Revolução Russa, além da violência política e social vista ao longo do filme.

O ato de comer é um processo biológico, mas a forma de consumo dos alimentos e como os sujeitos estabelecem suas relações com esses alimentos representam diferentes culturas e possuem diferentes simbolismos, assim como uma vestimenta ou um ritual religioso.

O Encouraçado Potemkin (1925), dirigido por Serguei Eisenstein

A partir de uma análise das relações de poder representadas pela carne, a vegana-feminista Carol J. Adams, em seu livro A política sexual da carne, debate sobre o conceito de “política sexual da carne”, um conceito cunhado para explicar a relação ao consumo de animais mortos com a opressão sofrida pelas mulheres em uma sociedade que possui o patriarcado como um dos seus pilares estruturantes. Segundo a própria autora, a política sexual da carne “é uma atitude e uma ação que animaliza mulheres e sexualiza e efemina os animais”.

A política sexual da carne associa a masculinidade e a virilidade ao consumo de carne. É a convicção de que homens precisam de carne para sobreviver e, portanto, possuem o direito natural a ela; de outro lado, o homem que rejeita o consumo de carne é tratado como inferior, em outras palavras, é tratado como “mulherzinha”. Carol J. Adams também sustenta a análise e o debate sobre racismo e colonização através das relações de poderes estabelecidas pelo consumo de carne: a partir da cultura ocidental branca, foi difundida uma hierarquia em que coloca a carne como o alimento superior — ideia defendida também por grupos que alegavam a superioridade branca no ainda no século XIX — , resultando em casos de apagamento e distorção de muitas culturas não-brancas que possuíam sua alimentação baseada principalmente em grãos, legumes, verduras e frutas.

A carne animal apresentada no início de Psicopata Americano está inserida em um cenário de glamour, retratando processos de idealização, fetichização e desejo que estão presentes em diversos momentos do filme, que faz uma sátira do corporativismo dos Estados Unidos. Ao longo do filme, o personagem principal desumaniza, consome e fetichiza as mulheres com quem se relaciona — assim como a carne animal do começo do filme — em uma busca constante de reafirmação da sua masculinidade em um ambiente corporativo masculino. A carne pode ser entendida como uma referência ao hedonismo violento de Patrick Bateman e também como uma representação para o processo de desumanização (própria e do outro) causada pela internalização de valores materialistas dentro do contexto socioeconômico em que o personagem está colocado.

Patrick Bateman é um homem branco, heterossexual, possui um cargo importante em uma empresa, um apartamento minimalista, veste roupas caras e é obcecado com a própria aparência. A partir dos estudos de psicanálise e cinema da pesquisadora Laura Mulvey, é possível situar o personagem no que ela analisa como “olhar ativo masculino”. A construção narrativa do personagem feita por Mary Harron, que também assina o roteiro do filme, deriva da narrativa clássica do cinema de estabelecer o personagem masculino principal como uma figura ativa cujo olhar do espectador masculino se identificará. E aqui está o golpe trangressivo de Harron no prazer da identificação: ao mesmo tempo em que Patrick Bateman surge como representante do poder masculino para gerar uma identificação no público, ele reflete de forma crítica o que a ideologia dominante define como o “homem perfeito” e as consequências trágicas dessa ideologia. Nesse movimento, ao se reconhecer no personagem, o público também precisa enfrentar questões que atravessam essa masculinidade.

Na cena em que conhecemos a rotina matinal de Patrick Bateman, somos expostos também ao entendimento que o personagem possui acerca de sua própria existência. Ao retirar a máscara facial, Bateman compartilha em um pensamento o sintoma do processo de desumanização e de perda da individualidade causados pela ideologia dominante:

Existe uma ideia de um Patrick Bateman; algum tipo de abstração. Mas não existe um verdadeiro eu: apenas uma entidade, algo ilusório. E embora eu possa esconder meu olhar frio, e você possa apertar minha mão e sentir a carne agarrando a sua e talvez você possa até sentir que nosso estilo de vida é provavelmente comparável… Eu simplesmente não estou lá.

Outro sintoma da personalidade consumista e individualista de Patrick Bateman é possível observar no tom de falsidade e sarcasmo de seu monólogo após Timothy Bryce chamar a atenção dos amigos para o que estava acontecendo no Sri Lanka:

Bem, temos que acabar com o apartheid primeiro. E diminuir a corrida armamentista nuclear, parar o terrorismo e a fome mundial. Temos que fornecer comida e abrigo para os sem-teto, e nos opor à discriminação racial e promover os direitos civis, enquanto também promovemos direitos iguais para as mulheres. Temos que encorajar um retorno aos valores morais tradicionais. Mais importante, devemos promover a preocupação social geral e menos materialismo aos jovens.

Essa personalidade consumista produzida pelo capitalismo através da ideologia liberal promove não só a própria desumanização de Bateman, que cada vez mais se torna um reflexo do que come, veste e compra, mas também é estendida para o modo como ele se relaciona e trata as pessoas ao redor. E o seu principal alvo ao longo do filme são as mulheres, transformadas em produtos para consumo.

Apoiando-se na teoria da Carol J. Adams, é somente quando o animal morto está no prato para ser consumido que se fundamenta toda a cadeia produtiva (ou mortífera) iniciada no matadouro; o desfecho legítimo para a vida do animal é ser consumido no prato. O mesmo é atribuído para as mulheres: o desfecho legítimo para a mulher é ser consumida por um homem. A comparação entre mulheres e animais é algo estimulado pela própria relação de poderes do modo de produção capitalista e nos deparamos com ela diversas vezes durante nossa vida, seja através de piadas ou, até mesmo, de propagandas publicitárias, onde ambos são transformados em objetos.

A cena final em que a secretária, Jean, encontra os desenhos de mulheres sendo torturadas e mortas na agenda de Patrick é a finalização do processo de desumanização do consumismo da sociedade capitalista estadunidense somado à misoginia. Jean, assim como todas as outras pessoas, conhecia apenas o Patrick Bateman superficial, construído milimetricamente para ser perfeito, desejado e invejado, o “sonho americano”. Jean é a classe trabalhadora inocente e deslumbrada com a perfeição da burguesia, sem saber que esta esconde todos os tipos de violência, exploração e opressão por trás de sua riqueza e de sua imagem idealizada.

O “americano” enfatizado pelo título do filme significa muito mais do que apenas a localização de Patrick Bateman, significa uma sociedade específica com uma ideologia específica e que está aniquilando os sujeitos em nome do capitalismo e do lucro das empresas.

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Barbara Albertoni

Cientista social e especialista em Cinema e Produção Audiovisual. Realizadora audiovisual, fotógrafa, crítica de cinema e criadora do projeto MALDITA.